Ao som do velho despertador cuco da família, Alfredo acordou naquela
manhã às 08:00h, como fazia desde que passara no concurso de Escriturário do
Banco do Brasil, 23 anos antes.
Cumprindo seu velho ritual, escovou os dentes, banhou-se, vestiu-se
para o trabalho e foi comprar pão e jornal. Passando pelo corredor, pensou em
verificar se sua mãezinha ainda estava dormindo, mas lembrou-se de que ela
havia viajado para Aparecida do Norte. Abriu a porta, porém, antes de sair,
olhou por alguns segundos a cartucheira calibre 36 e o chapéu de caçador
afixados na parede da sala, lembranças do seu falecido pai, o que o fez lembrar-se
do conselho que ele sempre repetia: “Alfredo, se não quiser ser apenas mais um
tolo, seja você mesmo!"
Trancou a porta, atravessou o jardim e ganhou a rua. Deparou-se então
com uma cena surreal: bem na frente da sua casa, algumas velhinhas zanzavam de
um lado para o outro, xingando palavrões, enquanto jogavam Game Boy. Riu
daquilo, sem saber o que pensar.
Quando levantou o olhar, no entanto, ficou verdadeiramente chocado:
havia centenas de pessoas nas ruas fazendo coisas sem sentido: a cidade parecia
um imenso hospício ao ar livre!
Sua primeira suposição foi a de que estava diante do fim de uma noite
de carnaval, mas lembrou-se de que era novembro. E nunca havia visto
um carnaval tão esdrúxulo! Começou a andar, curioso e desconfiado.
Na frente da pastelaria, alguns jovens, deitados em um tapete jogado
sobre a rua, liam, excitadíssimos, os livros do Machado de Assis, enquanto
dezenas de outros formavam uma fila, esperando a vez de se deitarem. No mesmo
momento, a televisãozinha do boteco mostrava Mark Zuckerberg dando uma coletiva
sobre o fim do Facebook.
Mais a frente, no meio da rua, ocorria uma partida de polo, na qual os jogadores,
devidamente montados, dividiam-se em "com camisa" e "sem
camisa". Forçou a vista e pôde perceber que o juiz da partida trajava uma
camisa do Corinthians e era... e era... era o Lula! " Putz!", pensou. Seguiu adiante.
Após dar mais alguns passos, parou para tentar identificar uma música
que soava ao fundo, amalgamando-se a todo aquele caos como uma trilha sonora
natural. Com as mãos nas orelhas, ouviu: "Mas ela é minha menina ... e eu
sou o menino dela..." Olhou ao redor e percebeu que a música vinha da
torre da Igreja, de onde a freira Eulália comandava um enorme equipamento de
som, bebendo uma garrafa de Keep Cooler e dançando esfuziantemente.
Um pouco adiante, avistou sua vizinha da casa ao lado, a mal-humorada Rita,
que vinha sorrindo na sua direção, nua, com as mãos fechadas em forma de
concha, um arranjo hippie na cabeça e cantando Mercedes Benz da Janis Joplin. Ficou
mais espantado com o fato de ela estar sorrindo do que com a sua nudez e todo o
resto. Num primeiro instante, ela não o vira, mas ele se colocou à sua frente,
de modo que ela não pôde prosseguir. Então gritou, tentando se fazer escutar em
meio a toda aquela confusão:
- O que está acontecendo, Rita?
Ela respondeu, dando pequenos saltinhos, sem desembaraçar as mãos:
- Eu consegui, Alfredo! As sementes de dinheiro! Nós vamos ficar muito
ricos! – em seguida, aquietou-se e abriu as mãos, quando Alfredo pôde ver
algumas moedas de real.
Alfredo não conseguiu lhe fazer outras perguntas, pois ela,
subitamente, saiu dali, cantarolando e rodopiando.
Voltou a andar, já pouco curioso e bastante preocupado.
Aproximou-se de um grupo de senhores que, vestidos como escoteiros,
compartilhavam um cigarro de maconha. Disfarçou-se por ali, tentando ouvir a
conversa, mas descobriu que eles apenas cantarolavam, estalando os dedos:
"O nerd de hoje é o cara rico de amanhã, o nerd de hoje é o cara rico de
amanhã...”
Começou a beliscar-se e a bater-se no rosto, tentando acordar. Não, não
estava dormindo. Então tampou os ouvidos, fechou os olhos e realizou uma oração
silenciosa. Assim ficou por alguns minutos. Tranquilizou-se. Depois,
lentamente, foi abrindo os olhos e destampando os ouvidos, esperando encontrar
novamente o mundo que conhecia. Foi
quando levou uma buzinada no ouvido: "Biiiiiiiiiiiiiiiii!" Assustado,
acabou de abrir os olhos e viu um homem travestido de Charlie Chaplin segurando
uma buzina de mão, o qual começou a provocar-lhe: "Teresinha! Você quer
bacalhau?! Teres..." Com algum custo, desvencilhou-se dele.
Assim que avistou a banca de revistas, começou a correr. Lá chegando,
todavia, viu que todos os jornais estampavam na capa, em letras garrafais,
simplesmente: “Boom!” Pegou um deles e foi abrindo. Na primeira folha, estava
impresso um "B" gigantesco. Na segunda, um "O" do mesmo
tamanho. Desistiu. Reparou que, dentro da banca, alguns garotos tomavam
chimarrão e desenhavam tirinhas políticas satirizando o presidente do Brasil, o
Tiririca:
- O quê?! – gritou, atônito.
A audição do próprio grito desencadeou nele uma espécie de ataque nervoso,
e ele agora berrava desesperado, utilizando-se
das mãos como um megafone:
- Pode parar Faustão, pode parar! Eu sei que é pegadinha!
Aflito, ficou esperando alguns minutos o cameraman vir ao seu encontro,
acompanhado da sua mãe – que era mentira, não tinha viajado para Aparecida do
Norte –, entretanto, isso não aconteceu. Pegou então o microfone de um homem
que estava comprando abacaxis dos populares em um caminhão e insistiu:
- Pode parar, Faustão! Paaaaaara!
Esperou mais alguns minutos, mas nada. Seguiu o seu rumo, agora apático.
Ao chegar à padaria, não precisou entrar, já que uma enorme cesta de
pães havia sido colocada do lado de fora, e as pessoas serviam-se livremente.
Pegou a fila. Quando o homem que estava à sua frente olhou para trás, percebeu
que se tratava do Padre Quevedo. Em
carne e osso! Invadido por um sentimento de esperança, indagou confiante:
- Padre, isso não é real, não é mesmo?
Padre Quevedo gargalhou demoradamente e depois, após ficar
repentinamente muito sério, como quem vai revelar o maior de todos os segredos
da humanidade, proferiu:
- Sabia que se eu levantar o meu dedo indicador no ar e fizer o
movimento de apertar um botão eu toco todo o Universo? E que tocando todo o
Universo eu acordo todos os espíritos adormecidos? – fez então o movimento, após
encostar o dedo na língua, umedecendo-o. Em seguida, começou a instigar Alfredo:
- Faça você também, faça você também...!
Sem dizer nada, Alfredo repetiu o movimento, pegou o saco de pães e começou
a chorar, soluçando como uma criança. Tentava, em vão, reter as lágrimas com as
mãos. Nesse estado, sentou-se no meio-fio e deitou-se sobre os joelhos. Quando
o choro finalmente cessou, um bom tempo depois, reergueu-se. Ficou, contudo, imóvel,
observando, em estado de transe, o presidente da câmara de vereadores da cidade,
banhado em suor, arrastar para dentro da padaria um enorme saco de farinha,
vestindo um colete do tipo "Posso Ajudar?"
Com o olhar perdido no vazio, começou a caminhar lentamente, trajando sua
camisa polo Hering azul escuro, sua calça Us Top e seus sapatos mocassim. Os
pães caíram pelo caminho. Na sua mente, um pensamento ressoava em looping: "Ontem,
eu poderia desaparecer como uma gota d’água no oceano; ontem, eu poderia
desaparecer como uma gota d’água no oceano; ontem, eu..."
Chegando em casa, passou sem olhar por Rita e outras pessoas que, nuas,
preparavam a terra do seu jardim.
Vagarosamente como um convalescente, destrancou a porta, entrou, retirou
a espingarda da parede, dirigiu-se para a sacada da frente, de onde podia ver
boa parte da movimentação externa, checou a munição, engatilhou a arma, mirou o
infinito e atirou, como se quisesse testar o equipamento. Esperou alguns instantes,
batendo o pé no chão, no mesmo ritmo do seu pensamento fixo: "Ontem, eu
poderia desaparecer como uma gota d’água no oceano; ontem..." Depois, sem
se apressar, pegou o cartucho sobressalente preso à arma, carregou-a,
engatilhou-a novamente e, mais uma vez,
disparou! O estardalhaço do segundo tiro penetrou nos seus ouvidos como uma
flecha, fazendo badalar um sino dentro da sua cabeça, e ele, enfim, saiu do
estado de letargia, bradando valentemente:
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!
Então, com os olhos esgazeados, recolocou
a cartucheira na parede, arrancou as roupas, vestiu o chapéu de caçador e foi
para o jardim plantar moedas.