segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Gota d'Água no Oceano

Ao som do velho despertador cuco da família, Alfredo acordou naquela manhã às 08:00h, como fazia desde que passara no concurso de Escriturário do Banco do Brasil, 23 anos antes.
Cumprindo seu velho ritual, escovou os dentes, banhou-se, vestiu-se para o trabalho e foi comprar pão e jornal. Passando pelo corredor, pensou em verificar se sua mãezinha ainda estava dormindo, mas lembrou-se de que ela havia viajado para Aparecida do Norte. Abriu a porta, porém, antes de sair, olhou por alguns segundos a cartucheira calibre 36 e o chapéu de caçador afixados na parede da sala, lembranças do seu falecido pai, o que o fez lembrar-se do conselho que ele sempre repetia: “Alfredo, se não quiser ser apenas mais um tolo, seja você mesmo!"
Trancou a porta, atravessou o jardim e ganhou a rua. Deparou-se então com uma cena surreal: bem na frente da sua casa, algumas velhinhas zanzavam de um lado para o outro, xingando palavrões, enquanto jogavam Game Boy. Riu daquilo, sem saber o que pensar.
Quando levantou o olhar, no entanto, ficou verdadeiramente chocado: havia centenas de pessoas nas ruas fazendo coisas sem sentido: a cidade parecia um imenso hospício ao ar livre!
Sua primeira suposição foi a de que estava diante do fim de uma noite de carnaval, mas lembrou-se de que era novembro. E nunca havia visto um carnaval tão esdrúxulo! Começou a andar, curioso e desconfiado.  
Na frente da pastelaria, alguns jovens, deitados em um tapete jogado sobre a rua, liam, excitadíssimos, os livros do Machado de Assis, enquanto dezenas de outros formavam uma fila, esperando a vez de se deitarem. No mesmo momento, a televisãozinha do boteco mostrava Mark Zuckerberg dando uma coletiva sobre o fim do Facebook.
Mais a frente, no meio da rua, ocorria uma partida de polo, na qual os jogadores, devidamente montados, dividiam-se em "com camisa" e "sem camisa". Forçou a vista e pôde perceber que o juiz da partida trajava uma camisa do Corinthians e era... e era... era o Lula! " Putz!", pensou. Seguiu adiante.
Após dar mais alguns passos, parou para tentar identificar uma música que soava ao fundo, amalgamando-se a todo aquele caos como uma trilha sonora natural. Com as mãos nas orelhas, ouviu: "Mas ela é minha menina ... e eu sou o menino dela..." Olhou ao redor e percebeu que a música vinha da torre da Igreja, de onde a freira Eulália comandava um enorme equipamento de som, bebendo uma garrafa de Keep Cooler e dançando esfuziantemente.
Um pouco adiante, avistou sua vizinha da casa ao lado, a mal-humorada Rita, que vinha sorrindo na sua direção, nua, com as mãos fechadas em forma de concha, um arranjo hippie na cabeça e cantando Mercedes Benz da Janis Joplin. Ficou mais espantado com o fato de ela estar sorrindo do que com a sua nudez e todo o resto. Num primeiro instante, ela não o vira, mas ele se colocou à sua frente, de modo que ela não pôde prosseguir. Então gritou, tentando se fazer escutar em meio a toda aquela confusão:
- O que está acontecendo, Rita?
Ela respondeu, dando pequenos saltinhos, sem desembaraçar as mãos:
- Eu consegui, Alfredo! As sementes de dinheiro! Nós vamos ficar muito ricos! – em seguida, aquietou-se e abriu as mãos, quando Alfredo pôde ver algumas moedas de real.
Alfredo não conseguiu lhe fazer outras perguntas, pois ela, subitamente, saiu dali, cantarolando e rodopiando.  Voltou a andar, já pouco curioso e bastante preocupado.
Aproximou-se de um grupo de senhores que, vestidos como escoteiros, compartilhavam um cigarro de maconha. Disfarçou-se por ali, tentando ouvir a conversa, mas descobriu que eles apenas cantarolavam, estalando os dedos: "O nerd de hoje é o cara rico de amanhã, o nerd de hoje é o cara rico de amanhã...”
Começou a beliscar-se e a bater-se no rosto, tentando acordar. Não, não estava dormindo. Então tampou os ouvidos, fechou os olhos e realizou uma oração silenciosa. Assim ficou por alguns minutos. Tranquilizou-se. Depois, lentamente, foi abrindo os olhos e destampando os ouvidos, esperando encontrar novamente o mundo que conhecia.  Foi quando levou uma buzinada no ouvido: "Biiiiiiiiiiiiiiiii!" Assustado, acabou de abrir os olhos e viu um homem travestido de Charlie Chaplin segurando uma buzina de mão, o qual começou a provocar-lhe: "Teresinha! Você quer bacalhau?! Teres..." Com algum custo, desvencilhou-se dele.
Assim que avistou a banca de revistas, começou a correr. Lá chegando, todavia, viu que todos os jornais estampavam na capa, em letras garrafais, simplesmente: “Boom!” Pegou um deles e foi abrindo. Na primeira folha, estava impresso um "B" gigantesco. Na segunda, um "O" do mesmo tamanho. Desistiu. Reparou que, dentro da banca, alguns garotos tomavam chimarrão e desenhavam tirinhas políticas satirizando o presidente do Brasil, o Tiririca:
- O quê?! – gritou, atônito.   
A audição do próprio grito desencadeou nele uma espécie de ataque nervoso, e ele agora berrava desesperado,  utilizando-se das mãos como um megafone:
- Pode parar Faustão, pode parar! Eu sei que é pegadinha!
Aflito, ficou esperando alguns minutos o cameraman vir ao seu encontro, acompanhado da sua mãe – que era mentira, não tinha viajado para Aparecida do Norte –, entretanto, isso não aconteceu. Pegou então o microfone de um homem que estava comprando abacaxis dos populares em um caminhão e insistiu:
- Pode parar, Faustão! Paaaaaara!
Esperou mais alguns minutos, mas nada. Seguiu o seu rumo, agora apático.
Ao chegar à padaria, não precisou entrar, já que uma enorme cesta de pães havia sido colocada do lado de fora, e as pessoas serviam-se livremente. Pegou a fila. Quando o homem que estava à sua frente olhou para trás, percebeu que se tratava do Padre Quevedo. Em carne e osso! Invadido por um sentimento de esperança, indagou confiante:
- Padre, isso não é real, não é mesmo?
Padre Quevedo gargalhou demoradamente e depois, após ficar repentinamente muito sério, como quem vai revelar o maior de todos os segredos da humanidade, proferiu:
- Sabia que se eu levantar o meu dedo indicador no ar e fizer o movimento de apertar um botão eu toco todo o Universo? E que tocando todo o Universo eu acordo todos os espíritos adormecidos? – fez então o movimento, após encostar o dedo na língua, umedecendo-o. Em seguida, começou a instigar Alfredo:
- Faça você também, faça você também...!
Sem dizer nada, Alfredo repetiu o movimento, pegou o saco de pães e começou a chorar, soluçando como uma criança. Tentava, em vão, reter as lágrimas com as mãos. Nesse estado, sentou-se no meio-fio e deitou-se sobre os joelhos. Quando o choro finalmente cessou, um bom tempo depois, reergueu-se. Ficou, contudo, imóvel, observando, em estado de transe, o presidente da câmara de vereadores da cidade, banhado em suor, arrastar para dentro da padaria um enorme saco de farinha, vestindo um colete do tipo "Posso Ajudar?"
Com o olhar perdido no vazio, começou a caminhar lentamente, trajando sua camisa polo Hering azul escuro, sua calça Us Top e seus sapatos mocassim. Os pães caíram pelo caminho. Na sua mente, um pensamento ressoava em looping: "Ontem, eu poderia desaparecer como uma gota d’água no oceano; ontem, eu poderia desaparecer como uma gota d’água no oceano; ontem, eu..."  
Chegando em casa, passou sem olhar por Rita e outras pessoas que, nuas, preparavam a terra do seu jardim.
Vagarosamente como um convalescente, destrancou a porta, entrou, retirou a espingarda da parede, dirigiu-se para a sacada da frente, de onde podia ver boa parte da movimentação externa, checou a munição, engatilhou a arma, mirou o infinito e atirou, como se quisesse testar o equipamento. Esperou alguns instantes, batendo o pé no chão, no mesmo ritmo do seu pensamento fixo: "Ontem, eu poderia desaparecer como uma gota d’água no oceano; ontem..." Depois, sem se apressar, pegou o cartucho sobressalente preso à arma, carregou-a, engatilhou-a novamente  e, mais uma vez, disparou! O estardalhaço do segundo tiro penetrou nos seus ouvidos como uma flecha, fazendo badalar um sino dentro da sua cabeça, e ele, enfim, saiu do estado de letargia, bradando valentemente:
            - Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

            Então, com os olhos esgazeados, recolocou a cartucheira na parede, arrancou as roupas, vestiu o chapéu de caçador e foi para o jardim plantar moedas.